Em Chamas (2018)

Teatro Magnético
5 min readApr 13, 2021

O ano era 2017 e eu estava assistindo à minha segunda aula de linguagem fílmica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro, dada pelo diretor lendário do Cinema Novo Ruy Guerra. A primeira aula consistiu em várias divagações sobre Wittgenstein e sobre como o professor levava o estudo de cinema à sério, não admitindo alunos incapazes de demonstrar a mesma dedicação, razão principal de ter reprovado quase todo mundo no semestre anterior. Na segunda aula, ele tentou explicar para a turma sobre o básico de signos linguísticos — a relação entre signo, significante e significado — além de quais formas um signo pode tomar: descritivo, icônico e indicial.

Algumas pessoas da turma ficaram em dúvida quanto ao que caracterizaria um signo indicial além do exemplo dado pelo professor: um miado indicando a existência de um gato. Perguntaram se uma tigela de comida poderia fazer a mesma coisa. O professor disse não, mas não explicou de maneira clara porque. A partir daquele momento, os próximos 90 minutos foram marcados por uma discussão amigável porém extremamente estúpida envolvendo quantidades diferentes de comida, humanos imitando miados, humanos comendo da tigela do gato e ainda bem nenhuma menção da caixinha de areia. Em nenhum momento o professor sentiu a necessidade de estabelecer a diferença entre denotação e conotação, e aqueles com diplomas universitários estavam passando por um misto de ataque de riso e pânico com a discussão, além de sentir uma repulsa tamanha pelo assunto a ponto de se recusar a participar no debate por medo de perder matéria cerebral no processo.

Abro uma resenha de Em Chamas — filme mais recente do cineasta sul-coreano Lee Chang-dong baseado num conto do autor japonês Haruki Murakami — com essa história porque esse tipo de quebra de comunicação, confusão entre o denotativo e conotativo, real e imaginado, é fundamental para a construção dessa narrativa em particular. Em Chamas é um filme de mal entendidos, meias verdades e ambiguidade.

Lee Jong-su (Yoo Ah-In) é um aspirante a escritor que sobrevive a base de bicos. Um dia, ele encontra uma garota chamada Hae-mi (Jeon Jong-seo), que se diz uma antiga vizinha e colega de escola dele. Jong-su não a reconhece, mas ela explica ser talvez por ter feito cirurgia plástica. Os dois desenvolvem um rápido caso antes dela viajar para o Quênia por alguns dias, período durante o qual Jong-su fica encarregado de alimentar o gato dela, Boil.

Ao retornar de viagem, Hae-mi está acompanhada de Ben (Steven Yeun), um coreano com quem fez amizade durante um imprevisto na África. Os três passam tempo ao longo dos dias subsequentes, com Jong-su demonstrando uma insegurança com relação à diferença de status entre os dois homens. Enquanto sabemos a condição financeira precária de Jong-su como aspirante a escritor e os problemas de sua família — seu pai agrediu um funcionário público e por isso foi sentenciado à prisão no início do filme — Ben vive de maneira extravagante, mas nunca sabemos a fonte de sua riqueza.

Durante uma tarde em que os três passam na fazenda de Jong-su, Ben confessa ter como hobby incendiar estufas a cada dois meses, adicionando estar planejando fazer isso novamente por perto. Jong-su confessa seu amor por Hae-mi para ele, e a repreende por dançar com os seios de fora na frente dos dois à luz do pôr-do-sol. Nos dias seguintes, ela desaparece.

A beleza de Em Chamas se encontra no fato de quase nada nesse filme ser concreto. Enquanto o grande ditado cinematográfico é mostre, não conte, Lee Chang-dong introduz um adendo na forma de por que mostrar quando se pode apenas sugerir? Nunca vemos o gato de Hae-mi em cena, mas somos incentivados a acreditar em sua existência devido a indícios conotando sua existência — a famigerada tigela de comida vazia e a caixa de areia cheia. Quando Jong-su finalmente encontra o que acredita ser o gato, nem ele ou o público tem razão para acreditar se tratar do gato em questão.

A própria Hae-mi é uma figura elusiva. Não sabemos se ela realmente conhecia Jong-su ou não. Uma das poucas informações dadas pelo filme sobre ela é sua habilidade como mímica. Ela a demonstra para Jong-su em um momento, tirando uma tangerina imaginária de um saco imaginário, tomando cuidado para descascá-la e separar os gomos, contando durante esse ato a necessidade para mímicos acreditar na existência do objeto imaginário, para a reprodução fiel dos movimentos necessários. Nós acreditamos que Hae-mi seja uma amiga de infância de Jong-su, mesmo ele tendo nenhuma lembrança dela, porque ela age como se o elo entre os dois é real o tempo inteiro.

Enquanto isso, Ben como personagem parece encapsular a natureza ambígua do filme. Em entrevistas subsequentes com críticos americana de ascendência coreana, Steven Yeun elaborou sobre o estilo de fala do playboy foi algo perdido na tradução, que ele foi instruído pelo diretor Lee a falar coreano com uma dicção extremamente correta, quase artificial. Ele é o yuppie millenial coreano, com nome ocidental, apartamento chique e uma postura blasé com relação à situação econômica dos outros personagens, além de tabus da sociedade coreana em geral. Ele é a pessoa que incentiva os três a fumarem um baseado durante a visita à fazenda de Jong-su. Isso tudo coloca Ben como uma figura ao mesmo tempo a se aspirar quanto ameaçadora. Quando Hae-mi desaparece, Jong-su começa a perseguir Ben sem causa provável, e quando encontra uma possível prova, descarta(mos, pois isso é uma ação conjunta entre protagonista e público, diga-se de passagem) qualquer cenário onde tal prova indicaria outra coisa senão sua suspeita.

Quanto à verdade sobre o que aconteceu com Hae-mi? Terminamos o filme sem saber o que aconteceu com ela, se ela realmente era amiga de infância de Jong-su ou se ela sequer tinha um gato. Não descobrimos se Ben incendiava estufas de verdade ou se isso era um eufemismo para algo mais macabro. Só sabemos as consequências de todas essas possibilidades se manifestando nas ações concretas de Jong-su. E ficamos então a discutir se ele estava certo ou errado e o que poderia ser verdade ou não. Como se importasse.

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Críticas, artigos e pensamentos gerais sobre cinema, por Pedro Hollanda